“Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.” (Mateus
5, 8)
Estar puro ou não, sempre foi uma questão colocada pelos
fariseus e publicanos no tempo de Jesus. Aliás, quando ele curava um leproso,
considerado “impuro” no seu tempo, Jesus sempre lhe pedia para ir mostrar-se ao
sacerdote no templo. Isso, porquê, era o sacerdote que deveria depois dizer
publicamente que aquela pessoa já não se encontrava impura e assim podia voltar
novamente ao seio da comunidade judaica.
“Ao descer do monte, seguia-o uma enorme multidão. Foi,
então, abordado por um leproso que se prostrou diante dele, dizendo-lhe:
«Senhor, se quiseres, podes purificar-me.» Jesus estendeu a mão e tocou-o,
dizendo: «Quero, fica purificado!» No mesmo instante, ficou purificado da
lepra. Jesus, porém, disse-lhe: «Vê, não o digas a ninguém; mas vai mostrar-te
ao sacerdote e apresenta a oferta que Moisés preceituou, para que lhes sirva de
testemunho.»" (Mateus 8, 1-4)
Jesus ao curar o leproso, estendeu-lhe a mão e tocou-o. Isto
é realmente magnífico porque era Ele que tomava a iniciativa, sem muitas
palavras.
Para além disso, a doença da lepra, no tempo de jesus, era
incurável e também contagiosa, e por causa disso, percebe-se que o afastar das
pessoas doentes do círculo da comunidade, também era no intuito de manter a
saúde pública da época.
Doenças como a lepra e outras, podiam dizimar aldeias
inteiras ou até cidades.
Isto de impureza e pureza parece ser um tema ultrapassado no
nosso tempo. Mas julgo, que não é bem assim!
Hoje em dia, a questão coloca-se ainda, mas de outras formas
e vestida de novos conceitos.
Por vezes, até acaba-se por enaltecer mais a impureza do que
a pureza. Ou transformar uma na outra, dando-lhe novos conceitos conforme os
intervenientes.
Por exemplo, o caso da doença da HIV, conhecida em alguns
países como a Sida.
Um artista, quando morre de Sida, é quase que idolatrado
como um herói. Lembromo-me do grande cantor Freddie Mercury (QUEEN), cujas as
músicas encantaram o mundo. Eu especialmente, até hoje, gosto de ouvi-las. São músicas
que sempre irão ultrapassar o tempo e ficarão sempre na minha memória.
No entanto, se falarmos das pessoas, não famosas, mas também
infetadas com o HIV, então, tudo muda de figura.
Aliás, ainda hoje, se alguém assumir que está com o HIV, as
pessoas, por mais compreensivas que sejam, irão se afastar ou pelo menos, não
estar tão perto dessa pessoa.
É facto, também, que mesmo que a referida doença já possa
ser controlada com medicamentos, hoje em dia, ainda assim, é um obstáculo
social em termos de emprego, por exemplo.
Então, a questão de pureza e impureza, ainda que com novos
nomes, atualmente também gera polêmica na sociedade moderna.
Até diria mais: a pureza hoje é muito mais valorizada do que
no tempo de Jesus. Porém, esta pureza prende-se ao físico, à aparência e ao
modo de vestir.
Nos filmes, essa busca da pureza prende-se à imagem do
artista, que tem de ser perfeitamente forte, ágil e muito bonito.
Especialmente, as mulheres, estas então, devem ter um aspeto de pura beleza e
ao mesmo tempo, serem fortes, ativas e descomplexadas.
Porém, tudo isso é uma pureza aparente, sem qualquer
conotação moral. O importante é o que se mostra no exterior. O bem e o mal
encontram-se sucessivamente e mudam de patamar, conforme o enredo da história.
Era exatamente esta busca da pureza aparente, que Jesus tanto
se debatia com os fariseus e publicanos do seu tempo. Estes, preocupavam-se
mais com isso do que fazer efetivamente a Vontade de Deus.
“Jesus saiu de novo para a beira-mar. Toda a multidão ia ao
seu encontro, e Ele ensinava-os. Ao
passar, viu Levi, filho de Alfeu, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe:
«Segue-me.» E, levantando-se, ele seguiu Jesus.
Depois, quando se encontrava à mesa em casa dele, muitos cobradores de
impostos e pecadores também se puseram à mesma mesa com Jesus e os seus
discípulos, pois eram muitos os que o seguiam. Mas os doutores da Lei do
partido dos fariseus, vendo-o comer com pecadores e cobradores de impostos,
disseram aos discípulos: «Porque é que Ele come com cobradores de impostos e
pecadores?» Jesus ouviu isto e respondeu: «Não são os que têm saúde que
precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os
pecadores.»"(Marcos 2, 13-17)
Jesus preocupava-se com a impureza interior, e por isso, até
perdia a sua paciência, por causa da obsessão que via nos fariseus, pela
manutenção da tal pureza exterior:
“Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque
limpais o exterior do copo e do prato, quando por dentro estão cheios de rapina
e de iniquidade! Fariseu cego! Limpa antes o interior do copo, para que o
exterior também fique limpo. Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas,
porque sois semelhantes a sepulcros caiados: formosos por fora, mas, por
dentro, cheios de ossos de mortos e de toda a espécie de imundície! Assim
também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos outros, mas por dentro
estais cheios de hipocrisia e de iniquidade." (Mateus 23, 25-28)
Para jesus, a impureza exterior e as consequentes restrições
do seu tempo, não eram um obstáculo.
Independente dos rótulos sociais do seu
tempo, Jesus nunca deixa de se aproximar e até deixa-se tocar pelos
considerados “impuros” do seu tempo:
“Então, uma mulher, que padecia de uma hemorragia há doze
anos, aproximou-se dele por trás e tocou-lhe na orla do manto, pois pensava
consigo: ‘Se eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei curada.’ Jesus
voltou-se e, ao vê-la, disse-lhe: «Filha, tem confiança, a tua fé te salvou.»
E, naquele mesmo instante, a mulher ficou curada." (Mateus 9,20-22)
Jesus ousa até atravessar as fronteiras da sua identidade
judaica e vai ao encontro dos estrangeiros ou daqueles que eram considerados excluídos
no seu tempo, devido a crenças, ideologias ou opiniões contrárias:
“Entretanto, chegou certa mulher samaritana para tirar água.
Disse-lhe Jesus: «Dá-me de beber.» Os seus discípulos tinham ido à cidade
comprar alimentos. Disse-lhe então a samaritana: «Como é que Tu, sendo judeu,
me pedes de beber a mim que sou samaritana?» É que os judeus não se dão bem com
os samaritanos. Respondeu-lhe Jesus: «Se conhecesses o dom que Deus tem para
dar e quem é que te diz: ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias, e Ele havia
de dar-te água viva!»" (João 4, 7-10).
Jesus, sempre foi bastante claro, acerca do que exatamente e
efetivamente mancha o ser humano e o torna impuro:
“Não sabeis que tudo aquilo que entra pela boca passa para o
ventre e é expelido em lugar próprio? Mas o que sai da boca provém do coração;
e é isso que torna o homem impuro. Do coração procedem as más intenções, os
assassínios, os adultérios, as prostituições, os roubos, os falsos testemunhos
e as blasfémias. É isto que torna o homem impuro. Mas comer com as mãos por
lavar não torna o homem impuro.»" (Mateus 15, 17-20)
Nos nossos tempos, esta obsessão pelo exterior ainda se
mantém.
As “limpezas exteriores” mostram-se atualmente na sua
plenitude.
Um artista, quando faz uma apresentação pública, tem de estar no seu
máximo perfeito. Basta uma camisola meio suja, uma posição mais embaraçosa ou
até um cabelo despenteado para que as revistas publiquem a sua imagem como
desleixo ou falta de estilo… Se fazem qualquer gesto, por mínimo que seja, nem que seja
um desabafo momentâneo, o público cai-lhe logo em cima. Não lhes é permitido
qualquer fragilidade… Não é à toa, que alguns deles encharcam-se de drogas ou
bebidas, ou então suicidam-se.
Por outro lado, a alguns és-lhe dado o silêncio e o
esquecimento: os mendigos, as crianças de rua, o pobre que vai aos caixotes de
lixo buscar a comida, o trabalhador, cujo o salário insuficiente obriga-o a uma
pobreza escondida na solidão do seu apartamento, o deficiente físico ao qual é
negado as oportunidades de emprego e as ajudas técnicas para manter a sua
autonomia, ao doente crónico que não consegue pagar o remédio que lhe alivia ou
cura a doença, por ser muito caro e para
além das suas possibilidades, etc.
Este condicionalismo social, no qual deixa-se todas estas
pessoas, são como os leprosos, que no tempo de Jesus, estavam restritos,
escondidos e reservados ao anonimato ou à sua casta social.
Este lado impuro da sociedade é a chamada “periferia
existencial”, a que o Papa Francisco refere muitas vezes em suas declarações
públicas. Um destes momentos, foi em 25 de agosto de 2014, na sua mensagem ao 35.°
Encontro pela Amizade entre os Povos, promovido pelo movimento Comunhão e
Libertação. O tema escolhido para o referido ano era: ‘Rumo às periferias do
mundo e da existência’. Sim, porque segundo o Papa Francisco, “as periferias
não são apenas locais, mas também, e acima de tudo, feitas por pessoas”. O Papa
Francisco convida-nos a ser “uma Igreja presente nas “periferias” da sociedade
atual”.
As “periferias” são feitas por pessoas, e mesmo que
aparentemente estejam completamente inseridas na sociedade, elas permanecem
marginalizadas em um contexto psicológico ou social, pela extrema pobreza ou
pela obsessão ao belo ou perfeito, que lhes é exigida.
“Jesus chamou,
depois, a multidão para junto de si e disse-lhes: «Escutai e tratai de
compreender! Não é aquilo que entra pela boca que torna o homem impuro; o que
sai da boca é que torna o homem impuro.» Os discípulos aproximaram-se dele e
disseram-lhe: «Sabes que os fariseus ficaram escandalizados, por te ouvirem
falar assim?»" (Mateus 15, 10-12)
Sim, estas palavras escandalizavam a todos que seguiam as
tradições à risca, porém, ainda hoje, continuam a escandalizar. Este escândalo
foi um dos motivos que levou Jesus à morte no seu tempo, e ainda hoje leva os
cristãos do nosso tempo a serem perseguidos e até mortos.
Porém, toda esta novidade que Jesus trouxe, revoluciona e
nos enche de entusiasmo, porque ainda hoje nos chama a atenção, assim como
aconteceu com Zaqueu…
“Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia
ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos.
Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena
estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia
passar por ali. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e
disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa.» Ele
desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria. Ao verem aquilo,
murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um
pecador. Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: «Senhor, vou dar metade dos meus bens
aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro
vezes mais.» Jesus disse-lhe: «Hoje veio a salvação a esta casa, por este ser
também filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que
estava perdido.»" (Lucas 19, 1-10)
Por isso, há que continuar a semear as palavras de Jesus por
todos, como semente que poderá despertar nos corações daqueles que até
julgávamos perdidos.
O ser humano é frágil. Ele pode buscar a perfeição,
aparentar que é o mais puro do mundo, porém, este percurso de pureza tem de
começar a partir de dentro.
Para Deus, o mais importante é o que somos, e não aquilo que
aparentemos ser.
No nºs. 2518 e 2519 do Catecismo da Igreja Católica
encontrei um belíssimo resumo desta desafiante proposta de Jesus:
“A sexta bem-aventurança proclama:
«Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5, 8). Os «puros
de coração» são os que puseram a inteligência e a vontade de acordo com as
exigências da santidade de Deus, principalmente em três domínios: a caridade (Cf.
1 Ts 4, 3-9: 2 Tm 2, 22.); a castidade ou rectidão sexual (Cf. 1Ts 4, 7; Cl 3,
5; Ef 4, 19); o amor da verdade e a ortodoxia da fé (Cf. Tt 1, 15; 1 Tm 1,
3-4; 2 Tm 2, 23-26.), Existe um nexo entre a pureza do coração, do corpo e da
fé: Os fiéis devem crer nos artigos do Credo, «para que, crendo, obedeçam a
Deus; obedecendo a Deus, vivam como deve ser; vivendo como deve ser, purifiquem
o seu coração; e purificando o seu coração, compreendam aquilo em que crêem» (Santo
Agostinho, De fide et symbolo, 10, 25: CSEL 25, 32 (PL 40, 196). Aos «puros de
coração» é prometido que verão a Deus face a face e serão semelhantes a Ele (Cf.
1 Cor 13, 12; l Jo 3. 2.). A pureza do coração é condição prévia para a visão.
Já desde agora, permite-nos ver segundo Deus, aceitar o outro como um «próximo»
e compreender o corpo humano, o nosso e o do próximo, como um templo do
Espírito Santo, uma manifestação da beleza divina.”
Jesus, no entanto, alertava que se conquistássemos a pureza, esta devia ser mantida:
“«Quando um espírito maligno sai de um homem, vagueia por
lugares áridos em busca de repouso; e, não o encontrando, diz: ‘Vou voltar para
minha casa, de onde saí.’ Ao chegar, encontra-a varrida e arrumada. Vai, então,
e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele; e, entrando,
instalam-se ali. E o estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro.»”(Lucas
11, 24-26)
Apesar de Jesus se preocupar com a pureza interior, na sua
última ceia com os seus discípulos, resolveu lavar os seus pés:
“Enquanto celebravam a ceia, Jesus, sabendo perfeitamente
que o Pai tudo lhe pusera nas mãos, e que saíra de Deus e para Deus voltava,
levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois
deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com
a toalha que atara à cintura. Chegou, pois, a Simão Pedro. Este disse-lhe:
«Senhor, Tu é que me lavas os pés?» Jesus respondeu-lhe: «O que Eu estou a
fazer tu não o entendes por agora, mas hás-de compreendê-lo depois.» Disse-lhe
Pedro: «Não! Tu nunca me hás-de lavar os pés!» Replicou-lhe Jesus: «Se Eu não
te lavar, nada terás a haver comigo.» Disse-lhe, então, Simão Pedro: «Ó Senhor!
Não só os pés, mas também as mãos e a cabeça!» Respondeu-lhe Jesus: «Quem tomou
banho não precisa de lavar senão os pés, pois está todo limpo. E vós estais
limpos, mas não todos.» Ele bem sabia quem o ia entregar; por isso é que lhe
disse: ‘Nem todos estais limpos’. Depois de lhes ter lavado os pés e de ter
posto o manto, voltou a sentar-se à mesa e disse-lhes: «Compreendeis o que vos
fiz? Vós chamais-me ‘o Mestre’ e ‘o Senhor’, e dizeis bem, porque o sou. Ora,
se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés
uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós
façais também. Em verdade, em verdade vos digo, não é o servo mais do que o seu
Senhor, nem o enviado mais do que aquele que o envia. Uma vez que sabeis isto,
sereis felizes se o puserdes em prática.”(João 13, 3-17)
Jesus, mais uma vez, manifesta a sua imensa sabedoria, ao
ensinar aos seus discípulos uma mensagem muito especial, que vai para além do
simples banhar dos pés antes da ceia.
Jesus, o Mestre, faz-se servo…
Jesus
ensina-me que só serei verdadeiramente pura se for humilde para
obedecer a Deus, independentemente do que os outros digam ou pensam.
A pureza interior nasce dessa humildade, de nos considerarmos
frágeis, e por isso, não sabemos nada e só em Deus, podemos atingir a plenitude
da perfeição interior.
Na Quinta-Feira Santa, este gesto de lavar os pés, repete-se
nas celebrações litúrgicas católicas, em todo o mundo.
O Papa Francisco vai presidir a celebração de «lava-pés» com
alguns presos na Casa de Reclusão de Paliano, no dia 13 de abril de 2017, Quinta-feira Santa, na Província de Frosinone
e Diocese de Palestrina, a sul de Roma. Esta celebração e visita do Papa é
“estritamente privada”.
Não é a primeira vez que o nosso amado Papa Francisco ensina-me
esta lição de humildade. E ainda mais, oferece-me a forma de o fazer: sem ser
publicamente pois a verdadeira humildade não pode ter aplausos.
A humildade é uma flor rara que nasce do anonimato de um
coração limpo e purificado no Amor Pleno de Deus.
Louvado Seja Deus!
BIBLIOGRAFIA
Passagens bíblicas retiradas do site www.capuchinhos.org
Catecismo da Igreja católica consultado em www.vatican.va/archive/cathechism_po/
Notícias do Papa Francisco consultadas em:
Pinturas de Gráccio Caetano - www.gracciocaetano.com
Sem comentários:
Enviar um comentário