domingo, 29 de julho de 2018

Apenas uma gota no oceano...



Uma das passagens bíblicas que mais me emociona e interroga, é a multiplicação dos pães feita por Jesus. Já li inúmeras interpretações acerca desta passagem, algumas delas com um sentido válido para o cristianismo e outras mais ligadas ao humano na sua racionalidade.

Multiplicar pães não é algo materialmente possível na lógica da natureza, e por isso, esta multiplicação do pão só pode ser feita na óptica da fé. Acreditar que um pão se multiplica é acreditar no humanamente impossível.

Este humanamente impossível é exatamente a fonte de muitas interrogações humanas, até mesmo em questão de fé e da existência de Deus.

Quando o incêndio devastou na Grécia, nesta passada semana, houve quem perguntasse “-Onde está Deus?”

Seria magnífico que diante de uma atrocidade, Deus aparecesse como super-herói a impedir o mal, especialmente defendendo os justos e inocentes.

O ser humano interroga Deus como uma criança interroga o seu pai, quando cai no chão, e ali o seu pai, mesmo presente, não o impediu de cair.

A criança pensa sempre que os pais tem a obrigação de impedir todo e qualquer mal que lhes aconteça, mesmo que seja a própria criança a por-se em perigo, intencionalmente ou não. Aliás, a noção de perigo para uma criança é algo abstrato, e por isso, sempre sanável. 

E por isso a multiplicação dos pães parece-me vir ao encontro desta desilusão filial.

Nós desejamos um milagre de Deus em nossa vida, que nos liberte, ou pelo menos, impeça que o mal reine.

“Depois disto, Jesus foi para a outra margem do lago da Galileia, ou de Tiberíades. Seguia-o uma grande multidão, porque presenciavam os sinais miraculosos que realizava em favor dos doentes. Jesus subiu ao monte e sentou-se ali com os seus discípulos.” (João 6, 1-3)

Para começar indaguei o “depois disto”. Sim, a meu ver, para um melhor entendimento, a leitura bíblica deve ser lida no seu contexto. Assim sendo, li o capítulo anterior do Evangelho de João.

Neste capítulo nº 5 do Evangelho de São João, fiquei impressionada. Jesus cura um paralítico em dia de sábado, e a partir disso, desenrola-se uma perseguição a Jesus por parte dos Judeus, especialmente os que mais percebiam ou diziam perceber acerca da Lei de Deus. As palavras de Jesus, quando lhes responde, são direcionadas no sentido de lhes dizer que Ele vinha do Pai, porém, os entendidos da lei não O aceitaram.

Então Jesus os convidou a ir às próprias escrituras, de que tinham tanto conhecimento:
“Investigai as Escrituras, dado que julgais ter nelas a vida eterna: são elas que dão testemunho a meu favor. Vós, porém, não quereis vir a mim, para terdes a vida! Eu não ando à procura de receber glória dos homens; a vós já vos conheço, e sei que não há em vós o amor de Deus. Eu vim em nome de meu Pai, e vós não me recebeis; se outro viesse em seu próprio nome, a esse já o receberíeis. Como vos é possível acreditar, se andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais a glória que vem do Deus único? Não penseis que Eu vos vou acusar diante do Pai; há quem vos acuse: é Moisés, em quem continuais a pôr a vossa esperança. De facto, se acreditásseis em Moisés, talvez acreditásseis em mim, porque ele escreveu a meu respeito. Mas, se vós não acreditais nos seus escritos, como haveis de acreditar nas minhas palavras?»" (João 5, 39-47)

Foi exatamente toda esta discussão acerca da veracidade da pregação de Jesus que precedeu a multiplicação dos pães.

Não importando a descrença dos judeus mais entendidos nas escrituras, uma multidão continuava a seguir Jesus, especialmente porque Ele curava os doentes.

"Jesus subiu ao monte e sentou-se ali com os seus discípulos. Estava a aproximar-se a Páscoa, a festa dos judeus. Erguendo o olhar e reparando que uma grande multidão viera ter com Ele, Jesus disse então a Filipe: «Onde havemos de comprar pão para esta gente comer?» Dizia isto para o pôr à prova, pois Ele bem sabia o que ia fazer. Filipe respondeu-lhe: «Duzentos denários de pão não chegam para cada um comer um bocadinho.» Disse-lhe um dos seus discípulos, André, irmão de Simão Pedro: «Há aqui um rapazito que tem cinco pães de cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?» Jesus disse: «Fazei sentar as pessoas.»(João 6, 3-10)

Jesus ergue o olhar, vê a multidão e compreende a sua necessidade e diz: - "Onde havemos de comprar pão para esta gente comer?"

Filipe vê a limitação material e responde: - "«Duzentos denários de pão não chegam para cada um comer um bocadinho.»"(João 6, 3 - 7)

Simão vê a limitação humana quando assim verifica: - "«Há aqui um rapazito que tem cinco pães de cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?»"

Então, Jesus convida à ação: - "«Fazei sentar as pessoas.»"

Neste diálogo de Jesus com os seus discípulos, toda a fragilidade e limitação humana é descoberta em frases curtas e tão cheias da realidade do nosso quotidiano.

Para começar, o que inicialmente nos impede de dar o primeiro passo é a limitação material. Quantas vezes dizemos que o que temos é infinitamente pouco para resolver os problemas do mundo.

E depois, quando há qualquer coisa que se possa dar, paramos diante da nossa limitação humana, pois julgamos isso muito pouco, e que em nada resolverá o problema que temos a frente de nós.

Também à Santa Madre Teresa de Calcultá, um jornalista também disse que aquilo que ela fazia era pouco… E a madre, em sua humildade, apenas referiu que se o jornalista também o fizesse, seria mais um, e se a esposa dele também o fizesse, já seriam mais dois, e se os filhos do jornalista também o fizessem, então seriam ainda mais pessoas a fazerem o bem.

A questão de um fazer e julgarmos que é pouco, é como aquele que vê um papel no chão, e o joga no lixo. Parece pouco, mas ali, aquele papel já não sujava o chão.

E o bem, assim como o mal, semeia-se, e dá muito fruto. Pois assim como um incêndio gerou tantas mortes em Portugal e na Grécia, também, desde então, fica uma pergunta: - e o que cada um fez para impedir que mais incêndios fossem ateados?

Para além da mão criminosa que os coloca, há também a impunidade, a falta de ações concretas para limpar e vigiar as matas.

Depois, há uma espécie de silêncio quando depois de chorarmos a calamidade, parece que deixamos tudo nas mãos dos outros, e assim continuarmos a nossa vida, cada qual, para o seu lado.

O ser humano gosta da liberdade, e quando tudo corre bem, há que glorificar a sua inteligência e engenho. Porém, há uma tendência infantil em se culpar Deus, quando as coisas não correm melhor.

Durante muitos anos da minha vida, não ouvi falar de incêndios a devastar cidades. Isso parecia uma daquelas calamidades que só aconteciam em lugares pouco desenvolvidos e sem as mínimas condições. 

Porém, a cada ano, isto de incêndios aparecerem mal há um bocado de calor, interrogava-me.

E os incêndios iam evoluindo ao longo dos anos. inicialmente arrasavam florestas inteiras com a sua vida biológica.

Depois, a devastação matava algumas pessoas, incluindo os próprios bombeiros que na frente das chamas lutavam para acabar com os fogos.

Nos últimos anos, o fogo começa a dizimar cidades.

Há aqui um crescente de mal que vai se desenvolvendo, ao longo de anos, sem que houvesse, de forma clara, uma igual adaptação e atenção de todos para um perigo cada vez mais letal.

Por vezes, falta-nos olhar para cima, como fez Jesus. Olhar para a multidão dos acontecimentos que nos rodeia e interpreta-los. 

Não basta chorarmos as vítimas com palavras. Há que agirmos. Mas esta ação não tem de vir apenas de entidades, mas de cada um, em particular. 

É preciso convidar a todos para "sentar", e assim parar diante de algo que não está a correr bem, e juntos encontrar respostas e soluções conjuntas, que incluam todos, não apenas as entidades supostamente designadas para isso.

Então Jesus manda os discípulos fazer sentar toda aquela gente.

Quando sentamos num lugar, ou é para descansar, seja para comer, conversar ou também, porque é necessário pararmos, e em em comunidade falarmos e vermos o que se passa à nossa volta.

Jesus não quer que as pessoas se vão embora para irem, cada qual, tratar de si e dos seus, conforme o que puderem. Jesus olha a multidão, e não teme os mil homens que estão diante de si, esfomeados. 

Jesus pede para que todos se sentem, pois, é preciso resolver ali mesmo, as necessidades e problemas, em comunidade.

Jesus buscava sempre a interação. Ele, como Filho de Deus, não precisava de ninguém. Porém, desde os seus mais tenros anos, não se isolou. Permaneceu com Maria e José, seu pai terreno, aprendendo deste o trabalho de carpinteiro. Depois, quando iniciou a pregação, escolheu entre os que o seguiam, doze apóstolos, com os quais partilhava e aprofundava os temas mais difíceis da fé e sua vivência.

Jesus convida-nos a não nos isolar, a menos que seja para orar, em momentos mais espirituais e de proximidade a Deus.

Por isso, a multiplicação dos pães dá-nos uma proposta ainda mais audaciosa quando Jesus agradece a Deus, tomando os poucos pães e peixes, daquele “rapazito” que deu tudo o que tinha. 

Jesus não fica com os pães e os peixes, mas dá-os para ser distribuído pela multidão.

"Então, Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, distribuiu-os pelos que estavam sentados, tal como os peixes, e eles comeram quanto quiseram."(João 6, 11)

Fico realmente curiosa como que alguns pães e peixes dados por um “rapazito” possam ter saciado uma multidão de pessoas.

No entanto, este tal “rapazito” é a tal pessoa que faltava neste diálogo dos discípulos com Jesus.

Do tal “rapazito” não se conhece o nome, nem sabemos se disse alguma coisa quando deu os pães e peixes que tinha.

A única coisa que este desconhecido “rapazito” fez, foi disponibilizar o que tinha.

E perante o pouco que havia, Jesus deu graças a Deus.

E do pouco, houve fartura.

Se calhar, o milagre que houve, para além da multiplicação divina dos pães, também houve a consciência coletiva das cinco mil pessoas, que vendo um rapazito dar tudo o que tinha para o Mestre, também as fez dar, cada qual, o que tinha e que julgava ser tão pouco.

O pouco com Deus torna-se muito, incalculável e para além do cálculo humano.

Sim, eu creio que Jesus podia multiplicar qualquer coisa, e de nenhuma maneira estou aqui a colocar em causa o milagre de Jesus. Acredito em milagres pois já os vi acontecer na minha vida.

Ainda mais, que a multiplicação se deu logo após à incredulidade dos judeus quanto ao seu poder e autoridade. Jesus usa da multiplicação para provar mais uma vez que os doutores da lei estavam errados nos seus julgamentos acerca de Jesus.

Porém, há que fazer uma leitura acerca disto da multidão, não ficar ali, passiva, e ao sentar-se, também cada qual, colocar à disposição dos outros, o que tinha. E isto é um verdadeiro milagre pois Jesus multiplicou os pães, os peixes e também a caridade entre todos.

E ao fim, ainda sobraram cestos de comida…

"Quando se saciaram, disse aos seus discípulos: «Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca». Recolheram-nos, então, e encheram doze cestos de pedaços dos cinco pães de cevada que sobejaram aos que tinham estado a comer. Aquela gente, ao ver o sinal milagroso que Jesus tinha feito, dizia: «Este é realmente o Profeta que devia vir ao mundo!» Por isso, Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazerem rei, retirou-se de novo, sozinho, para o monte."(João 6, 12-15)

Há uma preocupação de Jesus na recolha de todos os restos, pois nada se deve perder. A má distribuição dos bens pela humanidade, o esbanjamento e o desperdício que se vê em algumas partes do mundo, não serão a causa das injustiças e da pobreza ?

Jesus mais uma vez me interroga com esta preocupação em recolher tudo, e não deixar que mais uma vez, cada qual, queira guardar para si, o que sobrou.

E depois, eis que a multidão, saciada, inclina-se para mais uma tendência humana que tanto se vê ainda nos tempos hodiernos.

O sinal milagroso os fez ver Jesus como “o Profeta que devia vir ao mundo”, e o quiseram fazer “rei”.

Infelizmente, temos esta tendência em dar aos outros a incumbência que cabe a cada um de nós. Fazer os outros "reis" para que eles nos governem, e assim não nos preocuparmos, e cada qual seguir a sua vida sem se importar com os restantes. E se se Jesus fazia milagres, então melhor, pois assim tudo seria bem mais facilitado para todos. Quando algo faltasse, era só pedir ao rei milagroso.

Jesus não veio a este mundo para que os seres humanos o usassem como desculpa para descartar as suas responsabilidades como agentes transformadores da realidade.

Por isso, há uma tendência em desejarmos um deus super-herói, que a cada injustiça ou mal, viesse do céu e assim impedisse as consequências das ações humanas. 

Esquecemos, muitas vezes, que Deus deu-nos a tal liberdade que nos faz ser responsáveis pelo que acontece, seja para o bem ou seja para o mal.

E não se trata apenas de nós mesmos, mas de olharmos para a multidão, que connosco escreve a história humana.

Jesus retirou-se para o monte pois não era isso que queria transmitir com a multiplicação dos pães.

Se virmos bem quais são os protagonistas deste milagre deparo-me com um rapaz desconhecido que entregou tudo o que tinha. E deste tudo, dado sem receio, Jesus multiplicou para o infinitamente incalculável.

A história do mundo é feita assim destas anónimas doações. São as pequenas gotas que enchem o oceano, e este oceano já não seria o mesmo se não fossem estas gotas como dizia a Santa Madre Teresa de Calcutá.

Por isso, Jesus convida-nos a colocar diante dos desafios da humanidade, os nossos poucos pães e peixes, que julgamos ser tão pouco para resolver o que se passa à nossa volta.

Jesus nos convida a sermos esta gota de bem na história da humanidade.

Bibliografia:
As passagens bíblicas foram consultadas em

Deixo aqui alguns artigos que me ajudaram a refletir neste artigo: