domingo, 3 de junho de 2018

Onde está a vossa fé?



Hoje meditei o capítulo 4 da 2ª Epistola de São Paulo aos Coríntios que fez parte da liturgia da Palavra da Santa Missa.

As palavras de São Paulo mais uma vez entraram em meu coração como flechas de luz a vencer todos os temores e dúvidas.

As palavras são tiradas de uma das treze cartas do Novo Testamento atribuídas ao apóstolo Paulo, sendo esta escrita aos Coríntios considerada proto-paulinas, ou seja, escrita pelo próprio Paulo.


As Cartas eram o único meio, ao alcance de Paulo para comunicar com as comunidades recentemente formadas.

“Por isso, investidos neste ministério que nos foi concedido por misericórdia, não perdemos a coragem, mas repudiamos os subterfúgios vergonhosos, não procedendo com astúcia nem adulterando a palavra de Deus, antes, pela manifestação da verdade, recomendando-nos à consciência de todos os homens diante de Deus.” (2Coríntios 4, 1- 2)

São Paulo lembra-me que existe um dom, este ministério conferido pela Palavra de Deus que não pode ser adulterado pela nossa vontade humana sujeita aos tais “subterfúgios vergonhosos” que muitas das vezes nos leva para longe da vontade de Deus. Paulo usa uma palavra forte “vergonhosos” como que dar uma chamada de atenção forte para depois prosseguir a sua carta aos Coríntios.

“Mas esta «relação íntima e vital que une o homem a Deus»(1) pode ser esquecida, desconhecida e até explicitamente rejeitada pelo homem. Tais atitudes podem ter origens diversas (2) a revolta contra o mal existente no mundo, a ignorância ou a indiferença religiosas, as preocupações do mundo e das riquezas (Cf. Mt 13, 22 ), o mau exemplo dos crentes, as correntes de pensamento hostis à religião e, finalmente, a atitude do homem pecador que, por medo, se esconde de Deus (Cf. Gn 3, 8-10) e foge quando Ele o chama (Cf. Jn 1, 3).” (Catecismo da Igreja Católica nº. 29)

A vida diária neste mundo visível de muitos caminhos e opções oferece-nos acesso a várias ideologias e opiniões, nem sempre eficazes ou experimentadas no decorrer do tempo. Por vezes, os interesses económicos sobrepõem-se ao que é bom e válido.

“Se, entretanto, o nosso Evangelho continuar velado, está velado para os que se perdem, para os incrédulos, cuja inteligência o deus deste mundo cegou, a fim de não verem brilhar a luz do Evangelho da glória de Cristo, que é imagem de Deus.” (2Coríntios 4, 3- 4)

O que Paulo nos alerta é que há um “deus deste mundo” que cega e não nos deixa ver a  ”luz do Evangelho da glória de Cristo”. Aliás, Paulo diz mesmo que este Evangelho é a própria imagem de Deus. O Evangelho é esta “Boa Nova” transmitida por Cristo na sua própria pessoa, como Filho de Deus, enquanto viveu neste mundo.

É por isso que o homem tem necessidade de ser esclarecido pela Revelação de Deus, não somente no que diz respeito ao que excede o seu entendimento, mas também sobre «as verdades religiosas e morais que, de si, não são inacessíveis à razão, para que possam ser, no estado actual do género humano, conhecidas por todos sem dificuldade, com uma certeza firme e sem mistura de erro» (3). (Catecismo da Igreja Católica nº. 38)

“Pois, não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor, e nos consideramos vossos servos, por amor de Jesus. Porque o Deus que disse: das trevas brilhe a luz, foi quem brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo. Trazemos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que se veja que este extraordinário poder é de Deus e não é nosso.” (2Coríntios 4, 5- 7)

O que pregamos não pode vir de nós mesmos, mas sim devemos apenas falar do próprio Jesus, que nos deu o “conhecimento da glória de Deus”. Porém, somos uns simples “vasos de barro”, tão frágeis que guarda este tesouro imenso que é o próprio Cristo. Por isso não podemos falar do que vem de nós mesmos, mas apenas o que disse Jesus pois só assim se manifestará o poder de Deus em nossa vida.

“A transmissão da fé cristã é, antes de mais, o anúncio de Jesus Cristo, para Levar à fé n'Ele. Desde o princípio, os primeiros discípulos arderam no desejo de anunciar Cristo: «Nós é que não podemos deixar de dizer o que vimos e escutámos» (Act 4, 20). E convidam os homens de todos os tempos a entrar na alegria da sua comunhão com Cristo: «O que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram acerca do Verbo da vida, é o que nós vos anunciamos, pois a vida manifestou-Se e nós vimo-la e dela damos testemunho: nós vos anunciamos a vida eterna que estava junto do Pai e nos foi manifestada. Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também em comunhão connosco. E a comunhão em que estamos é com o Pai e com o seu Filho, Jesus Cristo. E escrevemos tudo isto para a nossa alegria ser completa» (1 Jo, 1, 1-4). (Catecismo da Igreja Católica nº. 425)


“Em tudo somos atribulados, mas não esmagados; confundidos, mas não desesperados; perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não aniquilados. Trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifesta no nosso corpo. Estando ainda vivos, estamos continuamente expostos à morte por causa de Jesus, para que a vida de Jesus seja manifesta também na nossa carne mortal. Assim, em nós opera a morte, e em vós a vida." (2Coríntios 4, 8- 12)

Estas palavras de Paulo encheram o meu coração de esperança porque, apesar de tudo, há em nós este permanecer firme, apesar do que nos possa acontecer.

Ousamos falar de Cristo aos outros e isso pode ser causa de tribulação, confusão, perseguição e abatimento que nos é infligido pelo deus deste mundo e seus seguidores. À imagem de Cristo na Cruz, o deus deste mundo não nos poupará pois sabe que o poder da luz de Cristo, com suas Palavras arrasta e converte muitas almas e as afasta do mal. São Paulo viveu isso em sua própria vida, desde que aceitou ser apóstolo do Cristo que antes perseguia. Está aqui em causa, uma luta pela vida, a verdadeira vida que Cristo nos veio anunciar.

A certeza de que a vida em Cristo refrigera as nossas dores e abraça-nos numa tranquilidade que apenas a fé poderá explicar.

“Animados do mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também nós acreditamos e por isso falamos, sabendo que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus, também nos há-de ressuscitar com Jesus, e nos fará comparecer diante dele junto de vós. E tudo isto faço por vós, para que a graça, multiplicando-se na comunidade, faça aumentar a acção de graças, para a glória de Deus.” (2Coríntios 4, 13- 15)


Devemos estar animados no “espírito de fé” pois a Ressurreição de Cristo é a nossa maior alegria, pois a graça de ter igual esperança deve aumentar a nossa Ação de graças, a todo o momento, apesar de todas as tribulações que passamos neste mundo.

Por isso, não desfalecemos, e mesmo se, em nós, o homem exterior vai caminhando para a ruína, o homem interior renova-se, dia após dia. Com efeito, a nossa momentânea e leve tribulação proporciona-nos um peso eterno de glória, além de toda e qualquer medida. Não olhamos para as coisas visíveis, mas para as invisíveis, porque as visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são eternas." (2Coríntios 4, 16- 18)

São Paulo convida-me a ver a realidade deste mundo visível como passageiro, enquanto a eternidade que Cristo nos ensinou está no que está invisível. Por isso, apesar das maiores dores que hoje me possam atormentar, tenho diante de mim a presença de Deus e toda a eternidade ao lado desta paz indescritível que só se encontra Nele. Porém este percurso com Deus inicia-se ainda nesta terra, renovando-me, agora, neste momento, no dia após dia, apesar de todas as dores, angústias e perseguições que me possam abater.

Quando penso nos primeiros cristãos que no tempo do apóstolo Paulo eram levados para as prisões, condenados à morte, das formas mais dolorosas, e mesmo assim, não desanimavam e nem desistiam da sua fé.

Esta palavra me interroga sobre a minha fé. Com as tribulações do dia a dia serei capaz de prosseguir sem me deixar cegar pelos cuidados deste mundo? Será que estou atenta aos pequenos sacrifícios do dia a dia, oferecendo-os pela conversão das almas que estão afastadas da luz de Deus assim como o fizeram os três pastorinhos de Fátima?  Não precisamos buscar sacrifícios para além dos que nos sucedem dia após dia.

Cada cristão tem este tesouro dentro de si, capaz de revigorar corações e libertar as cadeiras das trevas que abatem a existência terrena. Este grande tesouro é o que nos faz ter esperança quando outros já a perderam. 

Pela lógica do mundo, dizem-nos que somos os que levam o leme do nosso barco da vida, e é verdade. Porém, o barco navega no mar de circunstâncias e opções diárias, numa linha do tempo que nos oferece a eternidade, mas engana-se quem pensa que sozinho consegue guiar-se neste mar infinito e escuro. No céu, estão lá as estrelas que guiam também os navegantes, e como é bom, quando temos a luz de Deus na nossa vida a guiar os nossos passos, com o Espírito Santo e as palavras de Jesus Cristo.


Este é o tesouro magnífico dos que deixam Deus entrar nas suas vidas, permitindo que Ele também leve o leme, especialmente nos momentos de tempestade.

Termino esta reflexão, lembrando-me de uma passagem bíblica que relata quando Jesus dormia no barco, enquanto os apóstolos temiam por causa de uma tempestade que os arrastava.

Os apóstolos acordaram Jesus porque julgavam estar tudo perdido. Jesus acordou e com simples palavras calou a tempestade. Depois indaga os apóstolos: “Onde está a vossa fé?”

Jesus dormia em meio à tempestade pois deixava-se sempre nas mãos de Deus, seu Pai.
Então, em meio às tempestades da vida, Jesus Jesus também pergunta-me: “Onde está a vossa fé?”

“Certo dia, Jesus subiu com os seus discípulos para um barco e disse-lhes: «Passemos à outra margem do lago.» E fizeram-se ao largo. Enquanto navegavam, adormeceu. Um turbilhão de vento caiu sobre o lago, e eles ficaram inundados e em perigo. Aproximaram-se dele e, despertando-o, disseram: «Mestre, Mestre, estamos perdidos!» E Ele, levantando-se, ameaçou o vento e as águas, que se acalmaram; e veio a bonança. Disse-lhes depois: «Onde está a vossa fé?» Cheios de medo e admirados, diziam entre eles: «Quem é este homem, que até manda nos ventos e nas águas, e eles obedecem-lhe?»
(Lucas 8, 22-25)



As passagens bíblicas e pormenores históricos foram consultados em

O Catecismo da Igreja Católica foi consultado em:

Fotos  de Rosária Grácio

Pinturas de Gráccio Caetano

Referências:
1. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et Spes,, 19: AAS 58 (1966) 1039.

2. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et Spes, 19-21: AAS 58 (1966) 1038-1042.

3. Ibid., DS 3876. Cf. I Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Filius. c. 2: DS 3005; II Concílio do Vaticano. Const. dogm. Dei Verbum. 6: AAS 58 (1966) 819-820; São Tomás de Aquino, Summa theologiae, I, q. 1, a. 1, c.: Ed. Leon. 4. 6.